Cirurgiões plásticos fazem mutirão para atender escalpelados no Norte
Cirurgia estica o resto de pele que sobrou e melhora a aparência estética.
Conheça histórias de mulheres que superaram o preconceito.
Muitas pessoas que vivem em comunidades no interior da Amazônia são vítimas de acidentes em embarcações da região. Médicos da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica são responsáveis por operações reparadoras que mudam a vida destes brasileiros.
“Só senti um choque e quando me deparei já estava no chão, sem o meu cabelo. Dormi próxima ao motor, meu pé escorregou e meu cabelo enroscou no eixo. Ele media na cintura. A pele arrebentou toda e cobriu os meus olhos.” É assim que Rosinete Rodrigues Serrão, de 35 anos, se lembra do acidente que a deixou sem o couro cabeludo.
Rosinete voltava de uma festa às cinco da manhã, no município de Breves, interior do Pará, quando cochilou dentro da embarcação cheia de água. Ela tinha 20 anos.
“A dor é tão grande que acaba adormecendo tudo. Eu sentia dor na perna, nas costas e não podia ver nada porque perdi as sobrancelhas e a pele cobriu os meus olhos”, conta.
Mesmo com a cirurgia de remoção de pele, Rosinete ficou anos isolada e com vergonha do espelho. Só voltou a ter vida social quando conheceu outras mulheres na mesma situação.
Juntas, elas fazem parte da Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento da Amazônia (AMRVEA), entidade localizada em Macapá, da qual Rosinete é a atual presidente. A associação tem 117 integrantes – 110 mulheres e sete homens.
No Brasil, a perda parcial ou total do couro cabeludo, conhecida como escalpelamento, é mais comum na região amazônica, onde os moradores vivem cercados de rios e dependem de barcos artesanais para se locomover.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2011, 618 pessoas fizeram a mesma cirurgia de Rosinete no Sistema Único de Saúde (SUS). Número menor do que nos últimos três anos: 919 (2008), 878 (2009) e 797 (2010). Dentre esses casos, a imensa maioria está na região Norte.
Neste sábado, com apoio da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), a associação promove um mutirão humanitário para a realização de cirurgias reconstrutoras em pessoas vítimas de escalpelamento em Macapá. A iniciativa começou na sexta (11). A expectativas é atender 62 pessoas nos dois dias.
Segundo o cirurgião-plástico Luciano Chaves, vice-presidente da SBCP e coordenador do mutirão, os acidentes acontecem porque as embarcações não usam protetores no eixo do motor, o que já é obrigatório por lei, mas perdura pela falta de fiscalização.
“Ao se abaixarem para retirar o excesso de água do barco, os cabelos e roupas se enroscam no equipamento e arrancam o couro cabeludo, principalmente de mulheres e meninas de cabelos compridos”, explica Chaves.
Dos 120 pacientes cadastrados para fazer a cirurgia, somente dois são homens – um menino indígena que tinha cabelos longos e um homem cujo acidente ocorreu no braço, por pelos enroscados.
No entanto, só podem ser operados os pacientes com escalpelamento parcial, isto é, que ainda tenham pelo menos parte da pele na região afetada. Na cirurgia reparadora é colocada uma prótese na cabeça, semelhante a uma bola vazia, que, ao ser preenchida com soro fisiológico, vai esticando o couro cabeludo.
Depois de 60 dias, a mesma equipe médica vai voltar ao local para retirar as próteses e terminar a reparação. Em alguns casos, os cirurgiões implantam orelhas de silicone porque geralmente as originais se vão quando a pele é arrancada.
“Quando o escalpelamento acontece na infância a sequela emocional é enorme. Fora que todos esses pacientes têm uma dor de cabeça crônica porque é uma região muito quente e o couro fica exposto. Alguns usam peruca, mas o sol agride e faz com que se desenvolva tumores na região do crânio, como uma úlcera”, alerta Chaves.
Marcilene Rodrigues, de 24 anos, está ansiosa para ser operada no mutirão. A voluntária da Associação sofreu o acidente no dia em que a seleção brasileira de futebol perdeu para a França, na final da Copa do Mundo de 1998. Aos dez anos de idade, deixou os longos cabelos se enroscarem no eixo descoberto ao tentar tirar a água de um barco.
Como consequência, perdeu quase todo o couro cabeludo e um pedaço da sobrancelha. Ficou seis meses internada em Belém e ao voltar à Ilha do Pará (PA), onde o acidente aconteceu, não conseguiu mais andar de barco.
“Depois do acidente eu não pude mais tomar banho de rio, não pude mais correr, usar boné, tudo o que eu gostava. Só fazia chorar e tinha vontade de morrer”, conta.
Rodrigues também parou de estudar por anos porque sofria muito preconceito na escola. Somente depois que começou a frequentar a associação, resolveu voltar aos estudos e agora cursa a oitava série. O apoio das colegas e a necessidade de sustentar os dois filhos, de cinco e três anos, fruto de um relacionamento que também terminou por preconceito da família do namorado, são seus maiores incentivos.
“Não vejo a hora de poder me olhar no espelho. Vão reconstruir a sobrancelha, tirar as cicatrizes. É ver um novo rosto”, diz.